ELOGIO A UM HOMEM COMUMA COMMON MAN PRAISEELÓGIO A UN HOMBRE COMUN

A todos que tiveram o prazer de conhecer, conviver e desfrutar desse ser humano incrível que foi Dorival Alex Bortoleto 13/09/1940 – 26/03/2015), deixo algumas notas esparsas que ainda orbitam minhas memórias, bem como uma mensagem de despedida. Vejo grande parte de seu legado como uma inspiração em tempos de superficialidade e de escassez de honestidade.

Dorival Alex Bortoleto - in memoria
Dorival Alex Bortoleto – in memoriam (13-09-1940 / 26-03-2015)

NOTAS MEMORÍSTICAS

– Quando a cultura molesta: recordo que lá pela década de 1990 um famoso radialista de Americana-SP tinha um programa que consistia num conjunto de perguntas de conhecimento geral, que se respondidas corretamente pelo espectador que tivesse ligado para o telefone da rádio, era concedido um prêmio. A cultura do pai era notório que incentivamos que participasse e após resistir bastante, ligou e participou. Resultado: ganhou todas as participações (3 ou 4). Bom, não preciso nem dizer que o Sr. Geraldo Pinhanelli, radialista, pediu para que ele não participasse mais para dar maiores chances a outros participantes.

Ao lado do irmão Arrigo Bortoletto, ou melhor, frei Heraldo Bortoletto
Ao lado do irmão Arrigo Bortoletto (em memória), ou melhor, frei Heraldo Bortoletto

– Numa época que usar cinto de segurança ainda era opcional, recordo-me de muitas viagens na companhia de meu pai e minha mãe (Dorival e Maria Neuza), sempre espreitando no meio dos bancos. Uma maravilha, não só poder aprender muito sobre as estradas (sobre as quais meu pai tinha um amplo conhecimento, fruto de seus tempos de caminhoneiro) , cidades e também sobre a cultura local. Aventuras que certamente tatuaram algo de cultura e uma grande paixão pelos meus mestres.

– Seminarista e soldado-militar por contingência, esposo, pai, professor, caminhoneiro, comerciário, músico e regente por opção. Foi assim que constituiu-se como pessoa, como homem de bem, e será assim que lhe reconheceremos para sempre. Um ser público, que dava orgulho andar ao seu lado, pois não dava um passo na cidade sem ser cumprimentado. Realmente, alguém conhecido e reconhecido como Homem de Bem!

– Durante muitos anos minha admiração sobre o conhecimento de veículos de meu pai foi enorme. Ele conhecia e fazia comentários técnicos sobre quase todos os modelos de carros, caminhões e até ônibus. Conhecia as marcas, os modelos, as diferenças entre cada versão (ano), a potência, os problemas principais, enfim, estar ao seu lado significava receber uma formação constante sobre veículos. Porém o que mais me deixava intrigado, e as vezes até bravo, era sua “compulsão” por deixar seus veículos impecáveis, mas não do ponto de vista estético (lavando todos os dias, polindo, etc…, como fazem muitos), mas do ponto de vista mecânico. Qualquer barulhinho, qualquer alteração era imediatamente verificada e sanada. E assim, por vezes, tínhamos a sensação de que gastava mais arrumando os carros do que valiam seus carros. Mas assim ele era feliz, e nada podíamos fazer. E para cúmulo, sua simplicidade nunca lhe vez virar escravo da ganância ou da ostentação. Seu discurso e sua prática, extremamente coerentes, sempre fez com que tivesse veículos simples, pagos e com funcionamento impecável, e não, como muitos, com veículos caríssimo, lindíssimos mas devendo e sem dinheiro para abastecer. Esse foi nosso pai!

– Uma mania: arrumar seus carros. Velhos ou novos, mais ou menos sofisticados, não importava o modelo, mas ele nunca deixou seus carros falhando ou com algo quebrado. Alias, acho que frequentava as oficinas mecânicas mais do que precisava, buscando problemas onde não havia… era perfeccionista e um pequeno ruído era suficiente para ele mexer no carro todo.

– Jogador de futebol: embora nós filhos não tenhamos visto ele sempre dizia que jogou muito nos anos que passou no seminário religioso. Foi, somente como adulto, que pudemos vê-lo em ação. E, por anos, o Sr. Dorival, ou o “pneu-murcho” como era conhecido no Iate Clube de Americana, ele jogava quase todo final de semana. Foram dezenas de torneios e ele se divertia bastante embora não era um craque. Seu apelido foi dado devido ao caminhar “manco” dele, fruto do grave acidente que quase fez ele perder a perda. E olha que o Iate os apelidos eram divertidos: Brilhantina, Maridão, Mario Cavalo, …

– Todos, amigos e parentes, quando precisavam de um bom motorista, animado, firme, prudente, acionavam o Dorival, que nunca falhava. lembro, por exemplo, que meu tio Celso Ferrari (em memória), após perder a visão (um ex-caminhoneiro) só viajava com meu pai, em quem confiava totalmente. Sua amizade e parceria com cunhados, cunhadas e outros muitos parentes era algo notável.. mais uma prova de que foi uma grande e querida pessoa.

Ao lado da cunhada, Inês Palmer coelho, em 2013
Ao lado da cunhada, Inês Palmer coelho, em 2013

Em 2014, ao lado dos cunhados e cunhadas (Piracicaba-SP)
Em 2014, ao lado dos cunhados e cunhadas (Piracicaba-SP)

– Cantor de grande qualidade. Falar de meu pai, sem mencionar que ele amava a música seria cometer um erro grave. Sem a música ele não era nada. Adorar gravar (fitas, depois CDs, …) e depois presentear com suas “seleções musicais”. Colecionada discos de vinil, tinha centenas de fitas cassetes, e dezenas de cds. Era um exímio conhecedor da música, de seus cantores, grupos, intérpretes,… sabia de memória centenas de letras, que lhe permitia cantar quase todos os gêneros (do clássico ao sertanejo, da jovem guarda ao romântico). Cantava em português, italiano, inglês, espanhol e arriscava algumas músicas em francês. Foi durante anos regente do coral da Igreja São João Bosco (Americana-SP), mas essa parte merece uma nota própria. E nos últimos anos de vida, foi um dos mais assíduos frequentadores do Karaokê Babuche, na mesma cidade. Foi lá que fez muitos amigos e, como DORI, ficou conhecido como um apaixonado pela música e por ser um grande conhecedor dela.  Adorava copiar as partituras, estudá-las, e assim poder compreender mais a fundo a música que se escondia entre as linhas e marcações. Um apaixonado pela música.

Dorival e sua gaita (cromática 64 vozes), um show!
Dorival e sua gaita (cromática 64 vozes), um show!

– Foi como regente do Coral da Igreja Dom Bosco (Americana – SP) que meu pai viveu alguns de seus dias mais felizes. Religiosamente, todas as quartas-feira às 19h conduzia os ensaios do grupo, as vezes na casa de alguém, as vezes na igreja, sempre na parceria do pianista/organista e grande amigo De Nadai. Casamentos, bodas, aniversários, festas e, claro, milhares de missas, tiveram o privilégio de escutar o coral. Talvez o ponto alto tenha sido a missa que eles cantaram na Basílica de Aparecida do Norte, com transmissão pela TV e que nos deixou tão orgulhosos. Eu, ainda pequeno, adora subir no segundo andar da igreja para acompanhar a missa dela, sempre com a desculpa de que ia ver meu pai cantar/reger…. na verdade ficava enlouquecido com a potência daquelas vozes, e em como elas se somavam a um órgão de tubos que “gritava” fortemente, fazendo do Dom Bosco um lugar especial. Pena que nos dias de hoje, tudo isso foi substituído por nada, nem vozes, nem coral, nem órgão de tubos.. não sobrou nada.

– Adorava caqui, figo e frutas cristalizadas. Ter feijão, mesmo em dia de macarronada, era obrigatório. De gosto simples mas muito disciplinado, lembro que tinha toda uma rotina para comer: organizava seu arroz com feijão no prato de modo sistemático, e falava pouco à mesa.

– Desenvolveu uma habilidade incomum, e desconhecida por 99% por moradores das cidades: matar frangos quebrando o pescoço, sem que o animal sofresse ou seja, muito rápido. Possivelmente herança de sua infância no sítio, em Saltinho-SP, essa habilidade foi muitas vezes requisitada quando visitávamos nossa tia “Elza Coelho” (em memória), última remanescente da família da minha mãe a continuar a viver no sítio, e todos pediam por um almoço com frango caipira (de verdade).

– Exímio jogador de PIÃO: sim, Dorival foi meu mestre na arte de jogar pião. Sempre relatava que essa tinha sido uma de suas principais brincadeiras durante a infância, e que jogar para “rachar” o pião dos outros ou mesmo para fazer truques diversos (lançar para o alto e fazer girar nas mãos, fazer andar pelo braço, ainda fazer girar na cordinha, girar o pião na unha, …) era uma grande diversão. E foi assim que aprendi a brincar, com um grande mestre. Mas nunca cheguei nem perto do seu nível, e ficava impressionado ao vê-lo ficar meses/anos sem jogar e num piscar de olhos dar um show. Sempre tive orgulho dessas habilidades.  E olha que ele tinha uma coleção maravilhosa de peões de madeira doada por uma amigo artesão (marceneiro/entalhador), e eu, sem saber o que fazer com ela, acabei descuidando e simplesmente ela desapareceu.. não lembro onde foi parar… Mais um grande ensinamento do mestre Dorival Alex Bortoleto!

Jogar pião
Jogar pião

– Estes dias lembrei que aprendi a fazer notas em pequenos pedaços de papel com ele, alias, mesmo com muita tecnologia ainda dependo delas. Infelizmente não fui premiado com a maravilhosa memória que meu pai tinha… a minha falha constantemente. Saudades das fichinhas que ele guardava no bolso da calça com telefones, compromissos, etc. Por certo, ele tinha manias, como todos nós: e a que melhor lembro era a implicância com os bolsos das camisas polos. Ele nunca comprava camisa com bolso, e se ganhasse, retirava ele mesmo, ou, mais frequentemente, pedia a minha mãe para retirar.

– Dentre a imensidão de seu conhecimento musical, e sua paixão por conhecer detalhadamente compositores e intérpretes, queria estacar: Jesse, Gilliard, Roberto Carlos, Julio Iglesias, Hay Coniff, Frank Sinatra, Jean Michel-Jarre, entre outros. A verdade é que estar próximo ao Dorival era estar tendo uma aula de conhecimento geral sobre música o tempo todo. Provavelmente, sua experiência como tradutor (de discos em Italiano) da Gravadora BMG-ARIOLA aumentou ainda mais sua paixão pela música.

Homenagem e reconhecimento da cidade de Americana

Na sessão de n. 381 a Câmara Municipal de Americana aprovou por unanimidade o Projeto de Lei Nº 93/2016 – 04/08/2016 que “Denomina Rua Dorival Alex Bortoleto a Rua 06, localizada no Loteamento Industrial Nove de Julho” (CEP: 13.474-696). A família e os amigos agradecem o autor do projeto, o vereador Luiz da Rodaben, por oficializar esse agradecimento da cidade ao esforço realizado durante anos por esse cidadão exemplar. Detalhes do projeto. Google maps.

Da Sala de aula ao volante do caminhão

É certo que trajetória pessoais são, com frequencia, repletas de mudanças, com altos e baixos e com decisões que não podem ser entendidas por outros. Com meu pai não foi diferente. De criança foi ingressado num internato (seminário católico) pois minha avó passava por dificuldades para criar os 4 filhos após a morte do esposo (meu avô Fiovavante Bortoletto). Depois de anos de educação religiosa rígida, a erudição, muito acima da maioria da sociedade, fez muita diferença. Assim ao deixar o seminário, já diácono, se tornou professor e, inclusive, diretor de escola em São Paulo. Depois de anos nessa profissão, e tendo outras experiências como tradutor de letras de discos para a gravadora “BMG Ariola”, decidiu deixar tudo e mudar radicalmente de vida. Comprou um caminhão e com cunhados e amigos passou a viajar, levando açudar e trazendo madeira, principalmente entre os estados de São Paulo e Paraná. E sua jornada como caminhoneiro só acabou após uma acidente que o deixou quase um ano acamado. Com sorte pode preservar a perna, mas nunca mais conseguiu voltar ao volante, ao menos não profissionalmente. Assim, decidiu usar seus conhecimentos de madeireiro e com dois amigos abriu uma empresa (Madeireira Casa Branca – em homenagem a pequena cidade paranaense onde alguns amigos tinha a serralheria), um comércio de madeira (imagem). Por anos prosperaram e se tornaram pessoas muito conhecidas na cidade. A sociedade foi interrompidas mais de uma década depois e, sozinho, continuou a carreira de comerciário com a empresa AMEPIRA (nome que celebra sua vinda para Americana e sua infância em Piracicaba). E muitos anos se passaram até que decidiu aposentar-se e, em meio a crise brasileira da era “Collor” vendeu a propriedade e deixou os negócios.

Cartão original da Madeireira Casa Branca – Americana-SP

MENSAGEM DE DESPEDIDA (27 de março de 2015)

Nenhuma notícia nos aterroriza mais que a morte, embora essa seja uma noticia que muitos teremos o desprazer de receber diversas vezes ao longo de nossa vida.

Para alguns essa noticia chega sutil e lentamente, para outros inesperadamente, e mesmo que ela nos estremeça num primeiro momento a lei da vida nos faz acreditar que ela pode ser contornada, ou ao menos, atenuada. No entanto, nem sempre essa resposta que herdamos de nossos antepassados funciona, e para alguns a premissa faz-se realidade trazendo seu afastamento definitivo da vida carnal e de sua convivência física conosco. E esse processo é, em geral, cruel com todos nós.

Foi dessa maneira que convivemos nos últimos quatro meses, nós, filhos e familiares, com nosso querido Dorival. Com a dúvida e agonia de conhecer o dia seguinte, mas com a certeza e a força necessária para viver cada dia com a maior franqueza e generosidade possível.

Mas antes do fim, antes de perdermos a batalha pela vida, quero falar da vida que nosso pai levou, e quem foi ele para que hoje possamos ter orgulho dele, e do que fez para nós e para muitos outros.

Desde muito cedo, de sua infância para ser mais preciso, conviveu com o drama, com o enorme peso de perder seu pai e ser criado e educado por uma mãe guerreira. Sem trégua perdeu ao longo de sua vida uma irmã, um filho, a mãe e a esposa, e mesmo assim manteve-se sereno e fiel a sua vida simples, honesta e cautelosa.

Experimentou os mais diversos ambientes, da educação religiosa dos seminários católicos às boleias dos caminhões, atuando profissionalmente das salas de aula às estradas, até encontrar paz como comerciário. Nesse caminho, e superando dificuldades imensas constituiu família e construiu uma vida, oferecendo tudo o que foi preciso para que todos tivessem uma vida digna. Deu a sua família muito do que a vida não lhe permitiu ter, inclusive um pai.

Foi na estrada, na boléia de um caminhão onde ele conheceu seu primeiro grande desafio de vida. Um acidente lhe confinou meses a uma cama e parou sua vida no tempo. Mas foi o tempo que fez reencontrar ânimo para a vida. Sempre com a ajuda de minha estimada mãe, MARIA NEUZA COELHO BORTOLETO, que nos deixou precocemente em 1995.

Certamente foi a perda de sua esposa, o que mais lhe desnorteou. Talvez isso tenha sido a razão de sua segunda grande prova de vida: uma trombose da qual salvou-se contra todos os prognósticos. Por milagre como se costuma dizer! Mesmo passando-se quase vinte anos dessas difíceis experiências, ainda era possível ver em seu semblante sua incapacidade de superar tamanha ausência. Por isso, mudou sua vida social, trocou uma casa confortável por outra muito mais humilde, um carro do ano, por outro tão antigo que podia posar aberto que ninguém o subtraia. E nada disso abalou seu caráter, sua humildade e suas convicções, entre as quais a honestidade ressaltava-se de modo inegável.

Durante toda sua vida mostrou-se prestativo a todos que precisaram de sua ajuda. Alias, nunca negou apoio mesmo que isso lhe custasse um esforço extra. Uma qualidade quase perdida em tempos de individualismo extremo.

Sua cultura destacou-o constantemente, e por onde tenha passado sempre sustentou a imagem de um “homem de bem”. Não posso e não quero negar que nele tive minha maior inspiração intelectual, que considero-o meu mentor para um uso inteligente do saber humano. Mas ainda, tive com ele, de modo desinteressado e sempre sutilmente, a maior lição da minha vida: a da humildade e da dedicação ao trabalho.

Por tudo isso parece ser majoritário o sentimento de gratidão, admiração e respeito por esse homem, comum, porém de dignidade inabalável.

Assim foi a vida desse homem comum, porém único, e que hoje me despeço com a mesma dor que me invadiu quando minha mãe me deixou. Um homem que me orgulho de chamar de pai, e que estou certo que muitos também se orgulhem de ter conhecido e convivido. Um homem do tipo que fará falta para um mundo cada vez mais carente de pessoas do bem!

Descanse em paz, querido pai, DORIVAL ALEX BORTOLETO, seguiremos sentindo sua presença todos os dias!

Missa 7o. Dia
Missa de 7o. Dia


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